O mais doloroso do estado melancólico é o momento de dormir. Quase sempre tenho insônia, mas geralmente encaro isso numa boa, isso não me incomoda. A não ser quando estou melancólica. Quando estou assim, as lembranças de coisas ruins que aconteceram comigo tomam conta de minha mente e não me deixam em paz. Eu viro de um lado, viro de outro, mas elas continuam lá... me atacando por todos os lados. E eu não tenho pra onde fugir.
Eu procuro desesperadamente por lambranças boas, mas elas parecem estar escondidas demais, em algum canto obscuro da minha mente onde eu não posso chegar. Eu procuro desesperadamente por uma lembrança boa, uma só, onde eu possa repousar, mas embora elas existam, não consigo encontrá-las.
De tanto ser atacada por lembranças ruins, depois de um tempo percebo que estou chorando. Sinto o cheiro da lágrima. Esse cheiro traz outros cheiros, os odores das lembranças ruins. Sim, minhas lembranças ruins têm cheiro.
Agora não só as lembranças, mas também seus cheiros começam a me atacar, todos de uma vez. Os cheiros são piores do que as lembranças sozinhas, pois eles fazem parecer que voltei no tempo e que estou vivvendo tudo de novo.
Sinto o cheiro daquele lugar onde trabalhei, naquela cidade horrível, com pessoas horríveis, que fizeram coisas horríveis comigo. Começo a lembrar dessas coisas horríveis. Tento pensar em outra coisa.
Sinto o cheiro da mistura do pinho-sol com remédios, que eu tomei num momento de profundo desdespero. E aí sinto novamente esse profundo desespero.
Sinto o cheiro de benzina, que ao invés de cheirar, eu tomei, também num momento desesperado. E de repente estou em 1993, no quarto dos meus irmãos, feliz por ter encontrado a benzina. Eu estava feliz porque eu realmente achava que a benzina ia me matar. Mas se não é meu fantasminha que está digitando isso aqui, acho que eu não morri. Tento fugir desse cheiro.
E então sinto o perfume que a dona daquela pensão onde morei usava... naquela cidade onde as piores coisas aconteceram comigo. Começo a lembrar dos dias solitários e tristes que passei lá naquela pensão e uma amargura profunda me invade por dentro. Tento esquecer esse cheiro também...
Mas sou atacada pelo cheiro daquele perfume 'Lavanda Pop', que O Boticário tinha, que usei toda minha adolescência, e que só me faz lembrar coisas ruins.
Ao lembrar deste perfume, também me lembro do namorado que eu tinha na época e que há algum tempo atrás me deu esse perfume de presente 'pra mim lembrar dos bons momentos que tive na adolescência'. Além de me fazer lembrar de coisas ruins, descobri quase tardiamente que um ex-namorado casado não dá um presente a uma ex-namorada por pura bondade. Graças a ele, agora esse perfume me traz mais lembranças ruins.
Eu tento desesperadamente lembrar de cheiros agradáveis, mas descubro que até os cheiros que deveriam ser agradáveis se tornaram ruins. Lembro do cheiro de rosas, mas imediatamente vem à minha mente o rosto de um velho jornalista londrinense que levou um buquê de rosas em minha casa, naquela horrível cidade, num dia em que não fui trabalhar por estar com começo de pneumonia.
Nesse dia descobri, um pouquinho antes de ser tarde demais, que homens velhos não são bonzinhos com garotinhas de 17 anos por pura benevolência.
Lembro do perfume Burberry, que eu adoro. Mas ao invés de um cheiro agradável, o que aparece em minha mente são os olhos agressivos, assustadores e intimidadores do meu ex-marido. Descubro agora que, depois dele ter usado esse perfume, eu nunca mais vou conseguir achar esse cheiro agradável novamente.
Tento lembrar de cheiros que me trazem segurança (como graxa), mas ao invés de aparecer em minha mente a imagem do meu pai ou meu irmão mais velho, mecânicos, a imagem que vem é de um ex-namorado babaca e também mecânico que me magoou muito.
Na ânsia de encontrar cheiros familiares, acabo sendo atacada pelo cheiro de remédio que o quarto da minha avó tinha, pouco antes dela morrer de câncer. A imagem dela no caixão me vem à mente, e eu sinto o cheiro das flores. As flores me levam à outros caixões, e de repente estou ao lado do caixão da Grá, fazendo carinho em seu corpo gélido, pálido e inerte. Agora sinto o cheiro das flores do caixão dela. E de repente não estou mais sentindo o cheiro das flores do caixão, e sim o cheiro das samambaias do seu túmulo.
Aí a imagem do cemitério me faz ver o futuro como se ele já fosse passado. Começo a ver a morte de pessoas que eu amo e que ainda não morreram. Mas parece tão real. Me dou conta de que um dia elas vão morrer e que não estou preparada pra isso. Começo a chorar de novo, só que desta vez com mais desespero.
O Tatu acorda com o meu choro. Ele já sabe que são as lembranças ruins e sugere que a gente durma de conchinha (geralmente isso me acalma). Mas quando estou começando a dormir começo a ter pesadelos. Desisto de tentar dormir. Minhas lembranças ruins não vão desistir. Elas não vão simplesmente desaparecer. Não hoje. Hoje estou melancólica. Estou com uma tendência natural à tristeza e ao choro.
E as lembranças boas continuam ausentes. Eu sei que elas estão lá, em minha mente, em algum lugar. Mas eu não consigo encontrar. Me levanto da cama e acendo um cigarro. Ligo o computador. Eu devia ter feito isso antes. Mas estava tão melancólica que até o computador parecia uma coisa muito chata. Entro no meu blog. E descubro, vendo meus últimos posts, o quanto estou melancólica: Músicas melancólicas, posts trágicos, melancólicos e sem nenhum sentido. Começo a escrever e ao me concentrar pra digitar, as lembranças ruins vão embora. As lembranças boas ainda não apareceram, mas as ruins pararam de me atacar. Acho que foram embora. Pelo menos por hoje.
Agora eu já posso dormir em paz.
Boa noite pra vocês.
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